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sábado, 29 de agosto de 2015

Mais um trecho de meu livro: "Relatos de uma Vida ausente - O que não confesso nem ao anjos", onde conto a história de Carlos, um cara acomodado com sua vida que a tem mudada de forma radial apos a morte de sua mãe, uma quase estranha para ele, mesmo dividindo o mesmo teto com ela a mais de 30 anos. Hoje da página 11 até a 15. (caso queiram ler as 10 primeiras é só vistar meu perfil, que postei a uma semana mais ou menos.



(...)
Finalmente chega ao outro lado da pista, consegue cruzar o caminho dos donos das estradas são e salvo e toca a calçada com cheiro de urina, porém segura. Para se vingar de todos esses anos de coação, num ato impensado e inesperado, ergue a mão esquerda, de costas para os carros e de frente para uma loja de CD’s que estava fechada, pode ver sua imagem refletida na vitrine da loja, e os carros em suas costas, ele se pergunta: “Quem ainda compra CD’s?” Não importa. E de costas para a pista, para os carros, para seus problemas, com o braço erguido o mais alto que pode, estica o dedo anelar: “Eu os saúdo, filhos de uma puta!”, diz em voz alta, quase gritando e consegue perceber a reação de ódio dos motoristas, consegue ver seus semblantes distorcidos pelo reflexo da vitrine da loja. Senti em suas costas, em forma de calafrio, à vontade por parte deles de passarem com seus carros por cima de seus ossos. Abaixa o braço, sorri, e segue sem olhar para trás, com a sensação de dever cumprido. O ronco dos motores não o incomoda mais.

***

Carlos tinha 35 anos e um emprego medíocre em uma papelaria chamada Paulina, de mesmo nome da filha do dono, o senhor Francisco, um homem que ao sair do emprego investiu todas as economias na realização de seu sonho, mas que não tinha muito tino para os negócios. Na verdade não tinha tino algum.

Carlos sempre tinha que explicar do que se tratava seu ramo, pois sempre achavam, pelo fato dele trabalhar em uma papelaria, que lidava com coisas de gráfica, então, pacientemente, explicava que seu emprego não tinha nada haver com gráfica e sim com a venda de artigos para escritório, informática e até produtos de limpeza. E assim ele seguia seu dia trabalhando como uma espécie de lã de aço de mil e duas utilidades. Era encarregado das contas a pagar, de dar entrada em mercadorias e quando a coisa apertava saia para fazer entregas. Era a parte que ele mais adorava, pois podia sair da rotina enclausurante da papelaria e se sentir a materialização da utilidade. Sempre que tinha que fazer uma entrega se sentia bem, como se estivesse fazendo um bem à humanidade, mas sempre que voltava, havia uma pilha de coisas para fazer de suas atribuições, porque ninguém, nunca, o ajudava. Ele sempre ajudava a todos.   

O Senhor Francisco era um homem singular, não por sua genialidade e sim por sua falta de expressividade. Era um homem de estatura média e Q.I um pouco menor. Alguns funcionários diziam que ele era simplesmente o cara que assinava os cheques e enxergava os vendedores como se fossem cifrões, nada mais.

Carlos já trabalhava na papelaria a mais de dez anos, porém, tinha apenas três anos de carteira assinada. Sua vida não era fácil no trabalho, mas a de quem é quando se trabalha simplesmente para se pagar as contas. O trabalho foi inventado como forma de castigar os sonhadores, os artistas e boêmios que sabem apreciar boa cerveja e a companhia de prostitutas que sabem sorrir e não cobrar nada por isso. Carlos entendia de prostituas, não entendia de cerveja, mas de prostitutas sim, foram elas que lhe ensinaram tudo depois que seu pai se foi. É. Carlos teve um pai que foi embora, mas ele não sentia a falta de seu velho, pois sempre foi ausente, mesmo quando estava lá, na sala, assistindo a programas dominicais que exploram a desgraça alheia e mostram bailarinas sensuais em roupas que ficariam curtas em meninas de seis anos.

Inconscientemente ele adotara o Senhor Francisco como um pai, era por isso que aguentava tanta injustiça vinda do patrão. Além de ser um faz tudo na papelaria, ainda tinha que limpá-la aos sábados. Todos os funcionários folgavam nesse dia, menos Carlos que ia para o trabalho limpar os produtos de escritório, informática e limpeza. E isso era o mais irônico de tudo, ter que limpar produtos de limpeza, ter que limpar garrafas de detergente e de sabão em pó. Os clientes não aceitavam receber mercadorias empoeiradas e o Senhor Francisco achava que se o produto fosse coberto de poeira, seria desvalorizado. O pior de tudo era que a papelaria ficava em uma avenida movimentada, onde carros, ônibus e até veículos de tração animal não paravam de circular, então era impossível não acumular poeira ao longo da semana. E o trabalho se tornava duro, sujo, cansativo.

***

O sol já despontava menos tímido. Pessoas começavam a circular com mais frequência e frenéticas passavam umas pelas outras sem darem bom dia, sem se olharem nos olhos. Quem se importa com estranhos que não estão nos programas dominicais? Carlos segue para a próxima parada de ônibus “Ser pobre é uma merda”, pensa. Ao chegar à parada, vê algumas crianças cheirando cola – o cartão postal que todo político gostaria de por em baixo do tapete persa –, ele fica entretido com a felicidade entorpecente dos garotos de rua, sente uma ponta de inveja, não sabe o porquê, mas se sente com inveja dessa liberdade, por mais faminta e entorpecida que possa ser. Eles podem voar e Carlos preso ao chão, preso a sua vida insípida. 

Por sorte o ônibus chega logo, ele sobe. Vagueia com os olhos. Não há lugar para sentar. Vai em pé toda a viagem, mas não acha ruim, dessa forma pode apreciar a vista, as formas, o concreto, o asfalto cheio de emendas mal feitas, os não lugares e pessoas que passam, passam e passam sempre apresadas; quanto a ele, não há pressa, a menos que sua mãe comece a cheirar mal, mas ela está bem guardada, levará algum tempo até quererem enterrá-la como indigente ou a exalar algum odor. A vontade de estar se dirigindo para outro lugar o toma e um calafrio aponta do meio de suas costas “Não consigo imaginar como ela está”, diz para si. Não consegue chorar. Talvez seja o ônibus cheio, talvez seja a poluição ou um vírus que os países europeus tenham lançado na América Latina, quem vai saber dessas coisas. O que sabe é que gostaria de estar sonhando, mas sonhar tem sido cada vez menos permitido. 

O ônibus corta a cidade, pessoas sobem, descem, voltam a subir em outros coletivos – nossas vidas passam – e por vezes os motoristas queimam as paradas, então você é privado de descer, de subir, de viver, mas nunca de morrer. Felizes são os que morrem velhos, já lhe disseram várias vezes, mas Carlos não via vantagens em envelhecer. Os velhos só são respeitados por financeiras e essas não têm coração. Envelhecer foi o castigo de Deus para com a maldade humana, era nisso que Carlos acreditava, mas mesmo com esses pensamentos conflitantes ele amava a mãe, não a tratava mal, ele amava sua coroa, como a chamava carinhosamente em segredo, apesar de todo o distanciamento. 

O câncer em sua mãe não havia devorado apenas seus órgãos, também devorava Carlos, e Carlos que sonhava em ser vegetariano sabia que, assim como a progressão do câncer, não poderia voltar e concertar os copos quebrados. A verdade era que sua mãe havia morrido e seu único filho tinha desaprendido a chorar em alguma parte de sua existência.

Finalmente um lugar surge no ônibus, Carlos anda até a cadeira que parecia lhe sorrir, mas logo descobre que não, ela não estava rindo para ele e se dele, pois logo atrás havia uma mulher grávida, com olhos de cobiça. Ele nem bem se senta logo se levanta e cede o lugar para grávida, que é bom ressaltar, nem o agradece.

“Obrigado, otário”, pensou enquanto olhava a grávida que virou o rosto para o lado sem se importar com quem havia lhe proporcionado uma viajem menos dura. A cordialidade havia se tornado um artigo de luxo e os humanos aprendiam cada vez mais a se isolarem dentro de seus mundos particulares. 

Sua parada estava chegando – seu destino –, ironicamente a mesma parada onde havia vomitado quando criança, em um dia de domingo de sol. Ele não estava preparado para presenciar o fim da chama. Mas quem está? Você?

“Vai descer!”, gritou porque o motorista, por estar conversando com uma mulher que ria de qualquer coisa que ele lhe falava, não tinha notado que Carlos havia pedido parada.

Da parada onde descera até o hospital eram cerca de dez minutos de caminhada, mas naquela manhã foram vinte e um. Carlos seguia de cabeça baixa, ombros curvados e o maior vazio na alma. O sol o olhava e quase sentia pena daquela figura diminuta que seguia em linha reta ao encontro de sua verdade. Parou em frente ao hospital. Fica olhando, não com um olhar de contemplação, pelo contrário, reluta em entrar, mas não há como fugir, não depois de ter vivido tanto tempo com aquela mulher, não seria certo.

“O que a senhora está me fazendo fazer, mãe”, se questiona. “Vamos lá Carlos, segue rapaz”, fala para si, tentando criar coragem.

Por um instante suas pernas enrijecem. Não queriam estar ali. Todo o corpo não queria, mas a cabeça comanda o corpo e a ordem é dada: “Ande! Siga! Vá ver sua coroa morta, seu merda”. Seu corpo continua parado enfrente ao hospital, não quer obedecer ao comando. Sentiu o cheiro dos remédios, do formol e da morte, nada mais comum, mas naquele dia o cheiro lhe incomodava, pois sabia que o cheiro da mãe também estava ali, entranhado nas paredes, corredores, cadeiras quebradas, macas, nas batas dos médicos e até no banheiro. Isso daria um bom livro, pensou, mas quem ainda lê livros hoje em dia, se questionou. Você?
(...)

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