acompanhar

sábado, 22 de agosto de 2015

Como não estou com muita disposição para correr atrás de editoras, para tentar lançar meu livro por uma delas, vou postar aqui alguns trecho de meu livro "Relatos de uma Vida ausente - O que não confesso nem ao anjos", onde conto a história de Carlos, um cara acomodado com sua vida que a tem mudada de forma radial apos a morte de sua mãe, uma quase estranha para ele, mesmo dividindo o mesmo teto com ela a mais de 30 anos.



Da página 01 até a página 10.

"Esse é para a senhora, dona Dora." 


O som renitente do telefone rasga, dilacera o silêncio da noite. Carlos acorda perdido em trevas, suas mãos tateiam, como que tentando estrangular o som que tirara seu sono – um sono revigorante, depois de meses de noites e dias aflitivos.

 “Maldição! Onde está essa porcaria?”, fala procurando o telefone antes mesmo de acordar os olhos.

Ele sempre se questionava por que não podia ter uma extensão telefônica em seu quarto, ou na cozinha, ou no banheiro, ou em qualquer lugar daquela maldita casa que não fosse apenas à sala. Carlos levanta-se e depois de conseguir se equilibrar toca com os dedos sonolentos o interruptor. E se faz luz em seu mundo. Mesmo com os olhos fechados, ele podia sentir o calor que a luz emana em suas pálpebras e a vibração das ondas sonoras do telefone que gritava como uma pessoa desesperada para sair de uma situação indesejada.

Carlos vai seguindo para a sala, coça a cabeça, passa as mãos nos olhos, torcendo os punhos cerrados de um lado para o outro, de um lado para o outro, nos olhos que teimam não quererem permanecer abertos. Eles sabiam que teriam que seguir o mesmo corredor, com paredes descascadas, que as pernas sabiam de có percorrer sem ajuda alguma.

Carlos finalmente chega ao móvel, velho, onde repousava um telefone branco, encardido de tão antigo. Joga uma lista telefônica, que repousava no móvel, no chão, e senta-se, pois o lugar onde estava o telefone tem uma espécie de cadeira acoplada, que permite que quem vá fazer ou receber uma ligação fique sentado e dessa forma possa utilizar o aparelho com um modesto conforto.

“Alô, quem é?”
“Sr. Carlos?”
“Sim, quem é?”
“Sr. Carlos, aqui é do Hospital Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Precisamos que o senhor venha para cá.”
“Que horas são?”
“São 03h20 da madrugada.”
“Como você me liga a essa hora? Você não tem mais o que fazer?”
“Sr. Carlos, é sobre a sua mãe.”
“O que tem minha mãe?”
“Ela se foi.”
“O quê? Ela foi embora do hospital!?”
“Não Sr., ela faleceu.” 
“Puta merda!”

A mulher que lhe dera a notícia, provavelmente uma assistente social – não importa –, continuava falando, falando e falando, explicava toda a situação e os procedimentos que Carlos teria que tomar dali para frente, mas ele não conseguia ouvir nada, não conseguia sentir-se dentro do corpo. A boca ficou dormente, o coração acelerou, parecia querer saltar do peito e fugir para bem longe de toda aquela situação que todo o corpo precisava enfrentar. 

A ligação terminou e o silêncio desconfortável preencheu o ambiente, da mesma forma que naftalina quando deixada dentro de uma gaveta fechada por muito tempo, que ao ser aberta adentra as narinas queimando tudo em seu interior.  

Carlos colocou o telefone no gancho e ficou olhando para o nada, como se procurasse algo, algo que desconhecia a forma, a cor, textura e se fosse comestível nunca havia sentido o sabor. “Preciso dar uma mijada”, pensou. Levantou-se, andou meio cambaleante até ao banheiro. Chegou ao sanitário. Não conseguia acender a luz. Não conseguia achar o interruptor, o mesmo interruptor que estava ali a mais de 30 anos. Resolveu urinar no escuro mesmo. Sentou-se no vaso para não correr o risco de urinar todo o chão do banheiro, e enquanto urinava e ouvia o som da urina se chocar contra a água do vaso, sentiu-se o último ser da terra, um bicho em extinção, um caranguejo ermitão sem sua casa nas costas. 

“Onde se meteu esse interruptor?”, pensou em voz alta enquanto sentia a satisfação de secar a bexiga e o medo de secar por inteiro. 

Terminou de urinar, subiu o calção. Não lavou as mãos. Seguiu para o quarto. Deitou na cama – uma cama de casal para uma só pessoa dormir. Quanta solidão. Fechou os olhos com força, pensou estar sonhando, mas não estava sonhando. Não estava dormindo. Não estava sonhando.

Tornou a levantar e foi procurar uma roupa para ir ao hospital. Passou meia hora procurando e acabou escolhendo a mesma roupa que havia ido um dia antes passar o dia com a mãe: Um tênis preto, cano curto, uma calça jeans, já desbotada, e uma camisa polo azul – ele adorava a cor azul, no entanto, não gostava do mar, que todos dizem ser azul, mas Carlos só achava-o profundo, obscuro e inconfiável.

Vestiu-se, colocou a carteira no bolso da frente da calça – era uma carteira pequena, do tipo que serve para guardar cartões de créditos que nunca tivera. Pegou papel higiênico, pôs no bolso de trás da calça. Ele sempre andava com papel higiênico, dizia que era uma forma de não depender cem por cento de banheiros públicos. Pegou as chaves de casa e saiu no final da noite. Ainda era noite. Ainda estava escuro e não havia um pé de pessoa na rua. 

Olhou para os dois lados da rua, antes de sair totalmente de casa, não sentiu medo de enfrentar a madrugada, não tinha tempo para essas coisas. Como morava perto do terminal de ônibus, seguiu para lá na esperança de ter, ao menos, um ônibus esperando dar sua hora de sair e assim saírem juntos na cumplicidade da noite, sem terem que dar satisfação a ninguém.

Chegou ao terminal de ônibus e lembrou que não havia escovado os dentes. Não tinha importância. Nada mais tinha importância na verdade. Nada teve tanta importância assim quando ela estava viva. E agora ele estava perdido, pois finalmente iria sair da casca e isso o amedrontou mais do que contemplar o corpo da mãe sem vida numa cama de hospital público.

***

Nada de ônibus. Nada de motorista. Nada de nada, apenas noite, apenas o silêncio do nada para ser contemplado. Uma brisa fria tocou-lhe o rosto, o fez fechar os olhos por uns minutos, mas ele sabia que se os fechassem por muito tempo poderia reencontrar o sono que o espreitava sorrateiramente e dormir ao relento não estava em seus planos.

Carlos se espreguiçou, bocejou, e voltou a esperar o ônibus. Até aquele momento a ficha não havia caído por completo. Era como se fosse visitar a mãe no hospital e presenciar o sofrimento da matriarca que lutava contra um câncer a tempo de mais.

O sol ia nascendo timidamente e algumas pessoas já começavam a aparecer para tomarem seu transporte, para mais um dia na labuta. Carlos se lembrou de ligar para o patrão, tinha que avisar que não iria trabalhar. Mas era muito cedo para se ligar para alguém e dar notícias fúnebres, mesmo se fosse para um parente – apesar de Carlos não ter mais parentes vivos, era só ele e a mãe e agora apenas ele e mais ninguém para compartilhar as macarronadas frias nos fins de semana.

 Finalmente um ônibus chega e apesar de toda a demora na espera do coletivo e ter sido o primeiro a chegar ao terminal, Carlos acaba sendo a quarta pessoa a entrar na condução. Ninguém respeita filas hoje em dia.

O motorista desce do coletivo, com um copo de café na mão, para esticar as pernas antes de dar sua hora de sair. A fumaça do café denuncia que o mesmo estava quente e o aroma que exalava dava o tom do quão delicioso parecia estar, era um aroma nostálgico, uma lembrança boa de um abraço protetor. O estômago de Carlos acorda e lhe diz que está com fome, ele passa a mão na barriga, como que tentando acalmá-la. Dá resultado. O estomago se cala por um tempo e volta a adormecer.

“Bom dia”, fala o motorista com um sorriso simpático.

 Algumas pessoas respondem com os olhos, outras, mais íntimas do motorista, com a boca, mas Carlos não esboça nenhuma reação, parece perdido nos braços de Morfeu, como se estivesse vivendo um sonho acordado, porém com a certeza de estar acordado, mesmo se sentido deslocado da realidade.  

“Bom dia”, disse o cobrador enquanto Carlos pagava a passagem.

Carlos acena com a cabeça de forma inexpressiva e roda a catraca, vai para a última cadeira na parte de trás do ônibus, escolhe o lado direito, senta-se e espera por sua longa viagem. Mais pessoas começam a subir, não chega a lotar o ônibus, no entanto, acaba ficando apenas três cadeiras vazias. Algumas pessoas sentavam-se em pares, outras sozinhas e outras em pares, porém se sentindo sozinhas.

Carlos tira um aparelho de MP3 do bolso, põe os fones de ouvido e começa a escutar as músicas que havia selecionado há algum tempo. Só que na verdade não queria ouvir música, fez aquilo porque uma pessoa ameaçava sentar-se ao seu lado e ele não estava para conversas, nem para dar mais “Bom dia” a ninguém.

O motorista finalmente entra no ônibus, senta-se em sua cadeira, gira a chave. O veiculo liga de primeira – o ronco do motor dá o aviso que está tudo pronto para seguirem. Carlos sente que não está pronto. Duas aceleradas; primeira marcha engatada, portas fechadas, é hora de ir.  

Si tem uma coisa que tomar coletivos no mesmo horário todos os dias proporciona é a sensação de posse. Um senhor sobe na primeira parada, logo após terem saído do terminal, e assim que passa pela catraca, olha para o lugar onde Carlos está sentado. O homem sentava-se ali há muito tempo e Carlos mudara a rotina daquela pessoa, que logo o olhou da mesma forma como se olham pessoas recém-chegadas a uma cidade do interior. Todos sabem que ela não pertence aquele lugar e a olham, despudoradamente, com desconfiança. Carlos encolhe os ombros, cruza os braços e vira o rosto para o lado de fora da janela, que estava entreaberta, deixando passar apenas o necessário de vento frio para deixá-lo acordado, pois não queria correr o risco de passar da parada que iria descer, e o vento frio o deixava alerta.

O senhor continuava a olhar para Carlos, parecia não entender aquela nova realidade. O observador era um homem de meia idade, cabelos ralos e grisalhos, penteados para o lado direito – uma forma de camuflar sua calvície, mas não adiantava muito, pois a parte de trás de sua cabeça ficava com a careca à mostra.

“Posso jurar que esse cara quer me estrangular”, pensou e adiantou uma música. 

Ele poderia estar certo, pois nem todos estão preparados para saírem de suas rotinas viciantes e Carlos acabara de mudar a rotina de todos naquele ônibus, como se o bater de asas de uma borboleta, do outro lado do mundo, estivesse causando estragos irreversíveis em suas vidas. Carlos era a borboleta e em sua cabeça não só o senhor de meia idade, mas todos naquele ônibus, o queriam fora dali, pois ele era um corpo estranho e todas, ou quase todas, as pessoas temem o novo. O desconhecido às vezes desconforta os menos preparados.

O frio começava a incomodar Carlos, que parou de se preocupar com o senhor de cabelos ralos penteados para o lado e sua calvície semicamuflada. O senhor acabou sentando-se do lado de uma mulher, que pela roupa, deveria ser enfermeira. Quem sabe eles não se conhecessem e acabassem se apaixonando, pois a mulher não aparentava ser muito mais nova do que ele e como Carlos interferira na vida de todos no coletivo, quem sabe uma coisa boa surgisse. Na verdade, Carlos não queria saber de nada daquilo, ele só quis fechar a janela um pouco mais e dessa forma aquecesse.

***

Para chegar ao Hospital Nossa Senhora do Perpétuo Socorro seria preciso pegar mais um ônibus, o hospital era longe da casa de Carlos e a rotina de ter que ficar com a mãe quase toda à noite estava deixando-o exausto, ele já havia perdido 5 quilos desde a internação da mãe, não dormia direito, passou a tomar remédios para poder dormir “cápsulas de felicidade”, era como costumava chamar os comprimidos de rivotril que passou a tomar sem prescrição médica, graças a um amigo que o pai era dono de uma farmácia e lhe vendia o remédio sem burocracia alguma.

Finalmente sua parada estava chegando e só não sentiu ansiedade para descer do ônibus por restar um pouco do efeito do remédio em seu sangue. Carlos tinha ansiedade, começou a desenvolvê-la quando a mãe internou-se, e sempre que o telefone tocava ele pensava ser o aviso de que sua mãe tinha piorado ou morrido, por isso, passou a tomar os remédios quando estava em casa e a dormir com mais frequência no hospital, pois o toque do telefone o estava deixando paranoico.

O Hospital Nossa Senhora do Perpétuo Socorro era público e como todo hospital público sem regalias, mas mesmo assim ele conseguia arrumar um meio de dormir vez por outra no hospital. Ia para um banco ou ficava do lado de fora conversando com os motoristas das ambulâncias e os maqueiros. Chegou até a ajudar certa vez quando um acidente com um ônibus cheio de romeiros se chocou com um caminhão e muitas pessoas foram levadas para o hospital. Foi uma noite agitada.

Carlos não precisou pedir parada, pois o senhor de meia idade e cabelos ralos iria descer na mesma parada que ele; a enfermeira continuou no mesmo lugar, logo, Carlos não interferiu no destino dos dois, apenas sentou-se num lugar que era habitado por um senhor que tentava esconder sua crescente queda de cabelos.

Meio que para se redimir, deixou que o senhor descesse primeiro. Na verdade foi mais medo de ser pego de surpresa com um mata leão pelas costas. 

Carlos foi andando pela cidade, ainda sonolenta, para pegar seu próximo ônibus. A parada era enfrente a um cinema, o último que ficava na cidade, já que todos os cinemas estavam em shoppings. Aquele fora o primeiro cinema que Carlos entrou quando menino, ele não lembrava qual filme tinha assistido, mas lembrava da escuridão que o aterrorizou e da mão quente de sua mãe a tocar sua mão para que se sentisse seguro. Olhou para o letreiro, viu que filme estava passando e voltou a andar.

Para tomar o próximo ônibus tinha que atravessar uma pista de mão dupla, parou para esperar o sinal abrir para os pedestres e enquanto esperava soube, no fundo daquilo que chamavam de alma, mesmo sem ter certeza de que tinha uma, que Deus nunca o desejou pisando na terra, que seu nascimento foi um erro humano e então, seus olhos negros tentaram fazer brotar lágrimas em sua íris, tentaram lhe impor pena, mas ele não precisava de alto-piedade, nem da piedade de ninguém, porque sabia que estava por conta própria e que continuaria a se arriscar por entre os semáforos fechados para pedestres e aberto para os carros que voavam, distorcendo suas formas pela velocidade, e em um suspiro longo e alto desejou que sua vida não passasse de uma piada suja, contada por um velho bêbado depravado em um bar cheio de putas. Mas a vida tinha lhe reservado mais surpresas desagradáveis e mais confissões que um Padre pudesse suportar e manter-se dentro de sua sanidade sacerdotal, mental, humana.

O sinal finalmente abrira para os pedestres e os carros, até então desfocados, foram parando, tomando forma e dando forma a seus donos, que esperavam, esperavam, esperavam impacientes, querendo que o trânsito voltasse a funcionar – da mesma forma que o sangue precisa circular pelas artérias. Carlos seguiu em linha reta até o outro lado da pista, os carros eram acelerados como se desejassem passar por cima dele. Ele odiava quando os carros eram acelerados enquanto os sinais estavam abertos para os pedestres. Carlos achava aquilo uma forma de intimidação, de mostrar a superioridade idiota que quase todos têm dentro de seus automóveis. Ele continuava a seguir em linha reta, cabeça baixa, mas se roendo por dentro. O som dos motores. As pisadas no acelerador. Isso o incomodava muito, sempre incomodou, desde antes os pelos pubianos.

Nenhum comentário: