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quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Conto: Dilema profano



Dilema profano

Dentro de um porão, iluminado apenas pela luz do sol radioativo, um home faz os preparativos para sua morte programada. Arrasta uma cadeira, na penumbra do lugar, até tê-la embaixo de uma viga de madeira, pintada com óleo queimado por causa de cupins, que deixaram apenas o rastro de que já moraram ali e nada mais. Satisfeito com o posicionamento estratégico da cadeira, cuida logo de providenciar uma corda feita com restos de trapos que já foram roupas de homens que hoje jazem esquecidos.

O mundo como conhecia havia sido assassinado. De dentro de seu porão, melancolicamente úmido, podia ouvir os gritos de selvageria de homens que se digladiavam, canibalizavam-se e desaprenderam a sorrir. A natureza se devora de um jeito ou de outro.

Sobre uma mesa cheia de latas de ervilhas, feijões, carne enlatada e um casal de baratas, a última seringa com alguns ml de insulina - o que lhe matem vivo naquele inferno – repousava, privando-o do paraíso, paraíso esse que acreditava cegamente, mesmo depois dos homens terem deixado de acreditar.

Sacos e mais sacos de fezes se espalhavam pelo lugar que tinha pouco mais de 2 metros quadrados e possuía um complicado mecanismo de ventilação para que o ar não apodrecesse lá dentro, como se o ar de fora fosse menos venenoso.

Na vida, antes de toda aquela loucura, sonhara em ser escritor, conseguiu realizar o sonho e lançou um livro, um livro de 400 páginas que nunca seria lido por ninguém e que, hoje, suas folhas serviam exclusivamente de papel para libar sua bunda. Caixas e mais caixas de seus livros amontoavam-se uma em cima da outra Tinha que haver alguma ordem em todo aquele caos -.

O mundo ruía em sua volta e ele com 500 livros que nunca seriam lidos. Isso poderia ser frustrante a qualquer escritor, não para ele que mantinha a felicidade de ter escrito um livro com mais de 400 páginas, pois servia para limpar sua bunda agora. A noite dos errantes era o titulo do livro, sem crase no “A” devido a um erro da gráfica. Ele ficou de ligar na segunda-feira para reclamar, mas a segunda nunca chegou para ele, não da forma como estava habituado a vê-la chegar.

O livro falava de um apocalipse zumbi. “Adoraria ver zumbis lá fora”, se pegou falando muitas fezes em noite intermináveis de insônia. Lá fora havia homens em pele e osso, mas pele que osso, mas ossos do que homens (homens-zumbis). 

Queria acreditar que Deus tinha apertado o botão do FODA-SE e mando tudo para o inferno, mas sabia que Ele não tinha nada haver com aquilino. E não se pode culpar um deus por omissão. Ele sabia que alguém tinha apertado o botão do FODA-SE, no entanto, aquela altura, não importava de qual país tinha sido o dedo, ou se tinha sido o dedo de um branco, negro, asiático, homem ou mulher, de alguém que acreditasse em Deus ou não. Ou se havia sido o dedo de uma criança, não importava porque no final tinha sido um ser humano, no auge de sua monstruosidade, a fazer brotar as flores da morte.    

Procurou um espelho para se ver pela última vez, achou o pedaço de um que havia sido imponente um dia e hoje era apenas um pedaço de vidro que refletia um semblante ossudo do que um dia fora um homem. Ao ver-se se assustou. Seus olhos continuavam castanhos claros, mas eram de uma tristeza profunda, os cabelos ruivos estavam ensebados, desgrenhados e as sardas quase imperceptíveis devido à quantidade de ossos protuberantes de sua face. “Já tive bochechas, agora tenho apenas queixo e dentes podres”, falou. Pensou que talvez fosse o último ruivo da face da terra e achou engraçado ser um animal em extinção. 

Jogou o espelho num canto qualquer, não tinha mais importância, foi em direção da cadeira, subiu e amarrou a corda improvisada na viga de sustentação de seu abrigo-lar. Por uns instante teve medo de estar magro de mais e ao invés de quebrar o pescoço ficar dependurado sem poder descer – que irracional pensar assim -.

Olhou para a seringa com a última dose de insulina, se a injetasse em seu corpo quase morto não saberia mais como sobreviveria e o que menos queria era ter mais coisas para se preocupar. Pôs a corda no pescoço, não fez um lanço, amarrou-a de forma rude, com a certeza de que estava bem atada em seu pescoço fino e ossudo. Rezou um pai nosso, uma ave Maria. O mundo poderia ter acabado, mas sua fé ainda não.

- Não consigo – continuo com lágrima nos olhos – Não posso me matar, minha alma não teria salvação e eu iria para o inferno. Mas já vivo em um - refletiu.

Era um escritor fracassado que nunca havia vendido um único livro e agora planejava morrer, não por ser um escritor fracassado e sim por viver em um mundo fracassado. Tudo estava preparado, menos uma carta de despedida, para quem lê?


Seu corpo começa a sentir a necessidade da insulina, ele faz uma última prece, pedi para que Deus venha ou mande um anjo pegar a insulina e aplicar em seu braço, assim saberia que Deus sempre esteve com ele. Mas não foi Deus quem apertou o botão do FODA-SE e sim o homem, enquanto Deus dormia.                      

Marcos Martins.
  

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