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sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Conto:O rei está morto



O rei está morto
(Marcos Henrique Martins)

Quando levantei logo cedo e pude ouvir o galo me dar bom dia sorrindo percebi que algo faltava, não sabia ao certo o que era não tinha a profundidade das coisas pequenas embrenhadas em mim. A única coisa que me vinha à cabeça era que - O rei estava morto. 

Fui até a copa, tomei um pouco de água, aquela água descerá como vidro, pois meu estômago, ainda adormecido, não aceitava tomar banho logo cedo. E aquele pensamento voltava a minha razão - O rei está morto -.  Como não planejei meu dia, fiquei meio perdido neste momento inquietante de meu saber das coisas, logo eu, um cético assumido, não poderia acreditar em crendices supersticiosas, ora bolas. Se o rei estivesse mesmo morto como eu poderia saber? Mas a voz aguda e renitente ecoava no fundo de meus pormenores “O rei está morto”.

Cuidei de tomar um bom copo de leite morno, depois do total despertar de meu estômago, que a senhora Vangruber preparara para mim. A senhora Vangruber era uma imigrante que não teve sorte de enriquecer em terras brasileiras, o azar acometera sua vida. Mas que fique claro que eu não acredito em azar ou sorte, acredito nos fatos, em coisas palpáveis e na santa razão dos filósofos iluministas. Apenas citei a apalavra “azar” para replicar as palavras da senhora Vangruber, pois, acho engraçado entregar a vida a coisas de cunho sobrenatural. 

Sempre iniciava meu desjejum com um pouco de leite morno, poderia passar dias falando sobre os benefícios de se tomar leite morno. Todos os males físicos e da alma que essa lactose poderia curar. Nem o mais sábio dos alquimistas poderia dispor de tamanha sapiência das virtudes do leite e no deleitar de suas teorias, a respeitos das coisas da natureza, haveria de concordar comigo que o leite morno é e sempre será a cura para todos os males, físicos, morais, perturbadores de cunho assaz para tudo. Isso sem mencionar as moléstias da alma que tal bebida poderia curar. 

Como falei antes, sou um cético para certos pormenores, porém, estou vivo e suscetível às influências folclóricas que todo ser civilizado está. Farei um dia uma ode a tal bebida pura e simples de se preparar. Um dia farei um ensaio. É isso! Farei um ensaio sobre bom leite morno. 

Mas a voz volte e meia me perseguia “O rei está morto!”. Não me interesso por assuntos das nobrezas, não sou nobre, não por titulação, sou apenas um capataz das coisas burocráticas que ninguém mais ousa fazer. Se ao menos tivesse ouvido os conselhos de minha genitora, mas não. Parentes só nos dão conselhos para nos atrasar a vida, era assim que eu pensava em minha insolente burra e fugaz juventude.

Peguei as ferramentas de meu oficio, coloquei tudo em minha pasta e fui para minha labuta burocrática, que me fazia refém a mais de 10 anos. Minha labuta! Escravidão remunerada, soldo de minha juventude e outros adjetivos não tão nobres que não ouso mencionar. Logo eu, que sonhava em viver no meio do mundo, fui me acorrentar justamente em uma repartição pública, onde o público e o pessoal nunca podem se misturar. 

Com o desembaraçar das horas fui concluindo as etapas tediosas de meu ofício, mas sem que percebesse, soltei em alto e bom tom “O rei está morto!” Todos me olharam espantados, como eu poderia dizer tamanha sandice. Que rei? Que morte? Para que um rei se vivemos numa república? Sorri com rubor e me pus a trabalhar com a cabeça quase tocando a escrivaninha, mas os olhares, ah! Os olhares repúdiosos me incomodavam. Estava refém daqueles olhares que ansiavam em me caluniar, em me achar “doidivanas”. Podia ler os olhos de cada um.

No relógio, marcavam meio dia. A hora que todos esperam no âmago de seu ser, mas para mim não, não naquele dia, não podia me deliciar com os alimentos que repousavam em minha marmita. Não. Não até resolver aquele impasse “O rei está morto”.

Quanto mais lutava para me despistar de meus pensamentos irritantes, mas tinha a certeza que não conseguiria ir muito longe, pois era carcerário de meus pensares e, não conheço uma única alma viva que tenha conseguido fugir de seus demônios internos. Foi quando de súbito levantei da cadeira, fui até uma janela - ao menos não haviam nos privado de ar puro -, e gritei a plenos pulmões. 

– O rei está morto! 

Todos pararam. A cidade me olhara de baixo para cima e meu espírito atormentado pode enfim ficar em paz por alguns minutos, mas tamanha era a curiosidades dos olhos transeuntes lá de baixo que me senti como uma rapariga de saias que recebe uma rajada de vento malicioso e lhe deixa exposta em missa de sétimo dia.

As pessoas de minha repartição não gostaram de minha revelação, me chamaram “Anarquista!”. E logo tive que ir vê a autoridade máxima, O chefe. Um senhor de cabelos ralos, bigode bem cuidado e uma vaidade descomunal, mas qual chefe não é vaidoso? Para se chegar à chefia de algo o homem tem que ser vaidoso, se olhar no espelho e se ver em mil.

- Porque gritou aos quatro cantos que o rei estava morto?

- Não sei senhor.

- Como não sabe, por acaso você é algum piadista?

- Não, não sou.

- Então o que o levou a gritar daquela forma, essas palavras sem sentido? Por acaso não sabes que somos uma república?

- Sei, mas....

Todas as frases que se finalizam com um “MAS” são motivos para que todas as terminações nervosas comecem a incomodar o corpo. Um comichão que percorre da parte mais significante a menos insignificante de nosso corpo se inícia, num ciclo mais forte que cotrações de uma mulher prestes a dar a luz quando um “MAS” é proferido dos lábios de alguém.

- Mas... O que?  - perguntou meu algoz.

Pus-me a explicar.

- Acordei logo cedo, como sempre o faço. Tomei meu banho, escovei meus destes, me vesti, calcei meus sapatos, mas antes pus as meias, fui até a cozinha, tomei meu leite morno. O senhor conhece todos os benefícios que o leite pode nos proporciona?

Ele apenas me olhou, incrédulo, e não me respondeu a pergunta, talvez achasse que fosse uma pergunta retórica. Ele passou a mão em seus cabelos ralos e me fitando, perguntou.

- O que isso tudo tem haver com seu delírio na janela?

- Não foi delírio, senhor, foi uma forma de externar o que estava me dilacerando o peito e a cabeça.

- Que rei é esse, você o matou?

Tomei um susto! Aquela pergunta repentina. Queria ele me acusar de assassinato? Queria ele me condenar ao ostracismo das grades de aço e roupas xadrez? Não poderia cair naquele truque, não, ele não iria me incriminar por saber o que todos não sabiam, ou não queriam saber. O rei estava morto, era fato, agora querer me acusar de tamanha barbárie, isso sim, era uma loucura.  

- Não matei rei nenhum, não sou um assassino, meu senhor.

- Então que rei é esse? 

Não sabia o que dizer, então, mais uma vez, gritei a plenos pulmões.

- O rei está morto!

Meu chefe tomou um susto, seus olhos se arregalaram quase que saltam para fora do rosto, se não fosse seu nariz, acho que teriam saltado. Todos correram para a sala do patrão. Uma quase algazarra se formou na porta, todos queriam ver o que estava acontecendo. Não conseguia entender o que diziam do lado de fora, falavam todos ao mesmo tempo, quanto a meu chefe ficou transtornado e me mandou embora para casa, falou que eu precisava descansar e, de um bom copo de leite morno.

Ao seguir para meu lar, via as pessoas andando, levando suas vidas nas costas, todas sem terem a informação que eu tinha “O rei estava morto”. Sorri por algumas vezes, acho que me acharam bobo, mas não ligava, pois tinha a informação que ninguém mais tinha e não deixaria que ninguém ousasse roubá-la de mim. Um homem é uma fortaleza em seu lar, e era para lá que eu estava seguindo.

Ao chegar a minha casa, tratei logo de observar quais eram os cantos mais vulneráveis de meu lar, tratei de fazer os reparos necessários para que nenhum invasor ousasse invadir minha fortaleza. Fiz barricadas, armadilhas com baldes cheios de água com sabão, mas algo faltava. Então, tive a grande ideia. Tinha que informar a todos que “O rei estava morto”. Comecei pela lista telefônica, onde pude selecionar todos os telefones de jornais, do impresso, ao radiofônico e claro a TV, minha esperança era que a TV sabendo de tamanha revelação interromperia sua grade de programação para dar um boletim extraordinário. Toda a sociedade, ou melhor, todo o país teria que saber desse fato. Deixei meu egoísmo de lado e me pus a ligar para todos os meios de comunicação, já inventados, para que a humanidade pudesse descobrir o que só eu descobrira naquela manhã reveladora “O rei estava morto”.

Findado meu dever moral e cívico, pude descansar por alguns minutos, foi então que tive a grande ideia de rever minhas economias para poder comprar um megafone e do alto de minha janela começar a informa a todo o cidadão, descente, assim como eu, que o rei estava morto. Não tardei e, logo estava com o megafone em punho a informar a todos os que passavam por minha rua, e devido ao tamanho da parafernália que adquirira quem sabe pessoas das ruas vizinhas pudessem ouvir minhas verdades.

- O rei está morto! O rei está morto!

De forma, incansável, me pus a informar a todos, alguns nem se importavam com minhas revelações - pobres diabos - outros paravam a frente de minha casa e contemplavam as verdades que ecoavam de minha voz amplificada por meu megafone. Foi então que a conspiração se formou. Uma rede ultrassecreta de agentes de algum órgão decidiu me interpelar e mesmo com toda a proteção que havia criado, minha fortaleza foi invadida, saqueada, e eu, levado como prisioneiro para ser torturado, ou sabe-se lá Deus o que fariam com minha pessoa para que a voz da verdade que saiam de minhas cordas vocais findasse.

- Que lugar é esse – perguntei, sem ter uma resposta satisfatória. Na verdade não obtive resposta alguma. 

Depois da alguns momentos de reflexão percebi um ambiente, hora hostil, hora cercado de demência e olhares vagos para um horizonte imagético. Foi então que percebi um homem se aproximar, ele me olhava com olhos da verdade, uma verdade oculta que poucos podem perceber. Como eu era astuto e grande conhecedor dos gestos humanos, sabia que ele me escutaria e talvez fosse à única pessoa na terra que me ajudaria a iniciar um movimento libertário, uma nova revolução disseminativa e decisiva, pura, que todos iriam compartilhar da verdade absoluta que entranhava em mim.

- Você fuma? – me perguntou.

- Não, mas preciso de sua ajuda – respondi.

O homem me olhou de cima a baixo e com um gesto tímido, acenou positivamente para mim. Era disso o que eu precisava, de um fiel escudeiro para me ajudar a propagar tudo o que eu sabia.

- O rei está morto, sabia? – perguntei.

Foi então que percebi que não conseguiria revelar ao mundo minhas certezas. O homem me olhou tortamente e num momento de fúria, começou a esbravejar.

- O rei está morto?! Mas isso é impossível! Quem está levantando inverdades a meu respeito?! Guardas! Guardas! Descubram quem anda inventando calunias sobre mim e cortem-lhe a cabeça!

Era óbvio eles queriam que eu caísse no descrédito, queriam me transformar num sandeu para que a verdade nunca fosse revelada. O rei estava realmente morto, porém, colocaram um impostor, um proletário para usar a coroa que só pertencia ao verdadeiro monarca. 

Que o bom Deus nos ajude-se nessa hora de conspiração.                                

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